Rédeas, anquinhas e corsets

 

"Winter Novelties Designed by Redfern." Ilustração da The Lady Magazine, 1885, IN: Penelope Byrde, Nineteenth Century Fashion, London: B.T. Basford Limited, 1992. 


Um sucesso literário da era vitoriana é uma autobiografia de um cavalo no qual o próprio conta na primeira pessoa suas memórias desde sua vida como potro, seus dias de glória numa família aristocrata, sua decadência puxando um táxi pelas ruas sujas de Londres. Escrito em 1877 pela inglesa Anna Sewell, o conto Beleza Negra (Black Beauty), objetivava induzir simpatia no trato com os cavalos, aborda gentileza e crueldade, obediência e dominação. A autora viveu sob rígidos códigos religiosos, e uma queda na juventude a fez depender de cavalos para se locomover, tendo passado seus últimos anos numa cama, época na qual escreveu Beleza Negra. Descreve, sob a perspectiva do puro-sangue, os muitos procedimentos abusivos cometidos aos cavalos, entre os quais, os mais perniciosos seriam em nome da Moda, a aplicação de freios e rédeas que mantinham a cabeça do cavalo ereta, numa postura artificial e dolorosa. A relação de Beleza Negra com a Moda foi investigada por Gina Marlene Dorré, em sua análise sobre as representações do cavalo na cultura vitoriana, defende que a silhueta feminina das décadas de 1870 e 1880 deixava as mulheres visivelmente parecidas com cavalos, com seus corpos submetidos aos espartilhos e anquinhas. Para Dorré, a sujeição do corpo do cavalo na obra de Sewell metaforicamente corresponderia aos rígidos padrões da estética feminina vitoriana, que paradoxalmente almejavam o deslocamento de corpos quando amarrados. No século XIX, as discussões sobre a beleza feminina e a qualidade dos cavalos compartilhavam vocabulários semelhantes, sendo a mulher considerada um mero veículo de transmissão de propriedade, seu porte indicava posição de classe e sua disposição gentil denotava excelência. A obra impactou mudanças no trato com cavalos, época em que se iniciou reformas no vestuário feminino. O filme adaptado do livro em 2020 está disponível no canal da Disney sob o título “Beleza negra: Uma Amizade Verdadeira”, troca a Londres vitoriana pela Nova York contemporânea, e a personagem é uma égua cuja narração é feita por Kate Winslet

Por Flávio Bragança, @flaviobraganca

 

Para saber mais:

DORRÉ, Gina Marlene. Horses and corsets: Black Beauty, dress reform, and the fashioning of the victorian woman. Victorian Literature and Culture, v. 30, n. 1, p. 157-178, 2002.

STEELE, Valerie. Fetiche: Moda, sexo e poder. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

SEWELL, Anna. Beleza Negra, a autobiografia de um cavalo. Tradução Camila Fernandes; prefácio de Giovanna Chinellato. São Caetano do Sul, SP: Editora Wish 2021. 

WILSON, Elizabeth. Enfeitada de sonhos: moda e modernidade. Tradução Maria João Freire; Lisboa: Edições 70, 1989.

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