Ciborgue: corpos high-tech na fotografia de moda
Helmut Newton: “Machine age”; Vogue, novembro 1995. Modelos deconhecidas e Kristen McMenamy.
A mulher artificial, criada pela tecnologia, é um tema recorrente nos escritos e nas imagens de moda, desde o surgimento das modelos no século 19. Com seu modo ensaiado de caminhar, sua feminilidade performática e suas expressões faciais vazias e impessoais, a modelo desde cedo foi comparada com o autômato. Os próprios termos “manequim” e “modelo” (originalmente associado ao protótipo de roupa desfilado) já indicam essa proximidade da mulher com o produto vendido.
Essa associação ganha novos contornos no final do século 20, quando avanços na medicina e na informática se misturam com novas concepções filosóficas do humano e com um repertório de fantasias e temores plasmados na literatura e no cinema de ficção científica em um fenômeno conhecido como “pós-humanismo”. A moda explorou com fascínio a figura do “organismo cibernético”, ou ciborgue: criatura híbrida, entre o humano e o robô, na qual a matéria orgânica é suplementada pela tecnologia de ponta. Faz todo o sentido: afinal, o que é a roupa se não tecnologia vestível, suplemento artificial acoplado ao corpo, capaz de transformá-lo de organismo natural em artefato cultural de contornos extraordinários?
Se, por um lado, a mulher mecânica, na forma de robô sexual ou androide sexy e perigosa, é uma figura recorrente em narrativas machistas sobre o futuro, por outro lado ela demonstra um rico potencial imaginativo para feminismos queer e não-essencialistas. Do Manifesto Ciborgue de Donna Haraway, que defende uma concepção aberta, mutante e híbrida do termo “mulher”, às teorias de Paul B. Preciado sobre hormônios e substâncias químicas como micropróteses high-tech de masculinidade e feminilidade, a figura do ciborgue representa a promessa de uma humanidade inacabada, que se fabrica a si mesma constantemente. Misturando tecnologias cosméticas, têxteis e imagéticas, a fotografia de moda, nas revistas ou em suas novas modalidades digitais, nos ajuda a visualizar novos jeitos de ser mulher, homem, ambos ou nenhum, ou mesmo criaturas para além do humano, que ainda nem sabemos nomear.
Por Pedro Pinheiro Neves, @pedro_pneves
Para saber mais:
EVANS, Caroline. The mechanical smile: Modernism and the first fashion shows in France and America 1900-1929. New Haven: Yale University Press, 2013.
HARAWAY, Donna J. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TOMAZ, Tadeu (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
HOLZMEISTER, Silvana. O estranho na moda: a imagem nos anos 1990. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010.
PRECIADO, Paul B. Testo junkie. São Paulo: n-1 edições, 2018.
NEVES, Pedro Pinheiro. Moda monstra: a moda como ferramenta ciborgue no perfil de Instagram Fecal Matter. dObra[s] – revista da Associação Brasileira de Estudos de Pesquisas em Moda, [S. l.], n. 34, p. 147–174, 2022
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